quarta-feira, 28 de maio de 2025

Na Cama de Procusto

À sombra fico amor calado ,
meu grito é nó, meu peito é fardo.
Pois teu querer, tão doce e inteiro,
se entrega aos lábios mais traiçoeiros.

Teu coração, flor de outonais,
se deita em leito de punhais,
num colo frio, sem alicerce,
que nunca amou, só se dispersa.

E eu, de longe, sou o lume
que aquece em vão teu breve costume
de crer que amor se faz medida
num molde cego, com muitas feridas.

Deitas-te, amor, sem perceber,
na cama de Procusto cruel,
que corta o que tens de mais belo
e estica a dor sob falso véu.

Ela que nunca soube amar 
te força a forma, sem pesar,
molda teus gestos à mentira
e ri enquanto tua alma tira.

Te vejo dar, com mãos sinceras,
a quem destrói, a quem não te espera.
Te entregas puro, leal e mudo,
ao vão abismo de um amor raso e imundo.

E eu, que guardo em mim teu nome,
me calo mais a cada fome.
Sou tua paz que não alcanças,
sou teu refúgio em esperanças.

Enquanto em mim teu céu respira,
tu vives sob o jugo e a ira
de quem te quer não por inteiro,
mas sim quebrado, do seu jeito.

E mesmo assim, não te condeno 
amar, às vezes, é pequeno,
quando se espera o justo fim
de quem se esquece de si em mim.

Mas sigo aqui ferida e firme ,
amando o que ninguém define.
Pois mesmo à margem do teu dia,
és meu lamento… e poesia.

terça-feira, 27 de maio de 2025

órfãos do Eden

Fomos dados ao paraíso
ventre verde e azul, céu sem grades,
o sopro divino, o fôlego do barro,
alma de luz entre árvores e folhas.
E, ainda assim, sangramos.

Sangra a alma que recorda
um abraço que nunca veio,
um olhar eterno que nos voltou as costas,
silêncio onde um nome ecoava e ainda ecoa.
Fomos moldados à imagem do eterno
e deixados à mercê do tempo.

Mesmo as forças divinas,
generosas e cruéis,
que nos deram o fôlego da vida
num gesto de amor e indiferença,
logo se afastaram 
retiraram-se para o invisível,
e nos deixaram aos cuidados
dos ventos e das raízes,
dos relâmpagos, das cavernas e do solo.

Como se o abandono pudesse ser explicado
pelo verde que cresce sem permissão,
pela água que insiste em correr,
pelo sol que nos aquece e consome.

A grande mãe natureza 
justificativa simbiótica,
herança sagrada e impiedosa 
nos acolhe sem afeto,
nos nutre sem consolo,
nos vê sem nos reconhecer.

E nós, humanos órfãos,
buscamos no divino um lar,
na terra uma mãe,
no amor um alívio
para o corte aberto da consciência.

Pois ser humano é carregar o céu dentro
e não poder habitá-lo.
É caminhar por entre jardins
com o coração exilado.

O Inferno nas Águas Doces

Num pedaço abençoado,

Cercado de mata e chão de areias,

Onde a água corre serena,

Feito bênção, feito oração,

Vive um povo de língua afiada,

Que só espalha maldição.

Terra bonita e florida,
Cenário de paz e amor,
Mas quem ali bota os pés
Percebe o amargo sabor.
O verde se veste de luto,
Quando se alastra o rancor.

Lá mora uma professora,
De alma limpa e valente.
Trabalha, rala, se doa,
Ensina com fé permanente.
Mas sofre por boca traiçoeira,
De um povo cruel e indecente.

Falam dela pelas esquinas,
Inventam, distorcem, machucam.
Mentiras nascem como praga,
E os falsos com risos se juntam.
Transformam pureza em pecado,
E os fracos com ódio se escutam.

Cidade de águas tão doces,
Mas de coração tão amargo.
O céu de beleza tão rara,
Se tinge de cinza e de embargo.
O inferno não vive nas brasas,
Se esconde no olhar mais vago.

Enquanto ela acorda bem cedo,
Com livros, com sonhos e cadernos,
O povo se junta na praça,
Pra tecer o discurso do inferno.
Mentem, ferem, destroem,
E fazem do belo... veneno e fel.

Mas Deus vê tudo lá do alto,
O que é mentira e o que é verdade.
Quem planta fofoca e maldade,
Colhe dor, solidão e falsidade.
E quem vive de honra e trabalho,
Recebe da vida dobrado em bondade.

Que saibam os falsos da vila:
A língua que fere se enrola.
O tempo derruba o soberbo,
E faz da verdade uma escola.
E a mestra, que hoje padece,
Amanhã seu valor se consola.

Portanto, escutem bem meu recado,
Povo amargo de língua felina:
Quem planta mentira e veneno,
Colhe dor, solidão e ruína.
E a mestra, vai continuar erguendo a cabeça,
Seguindo firme, com sua inspiração divina.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Entre o que fui e o que não disse

Abri-me como quem se despe da alma,
não por coragem, mas por esperança.
Há em mim um hábito de pensar demais
e um desassossego quieto, quase menina.

Falei-te não com a boca, mas com o tempo,
com esse silêncio que só os atentos escutam.
Mas tu ouviste o eco e não o verso,
ficaste na margem enquanto as águas lutavam.

O amor, se é que existe, não se prova 
ele se oferece, sem garantias ou promessas.
Mas pediste que eu falasse menos do que vivi,
como se o passado tornasse o agora uma peça desnecessária.

Ah, como é fácil julgar o que se revela,
e tão difícil ser inteiro no presente...
A alma humana, como disse o poeta,
é feita de tudo que sente e do que mente e omite.

Não te acuso  somos sombras tentando adquirir forma. 
Mas quis que soubesses: foste em mim um espaço.
Não um abrigo, mas um reflexo
do que talvez eu mesmo já não alcanço.

E ainda assim, te espero na curva do entendimento,
onde as palavras não ferem, apenas tocam.
Porque amar, no fundo, é isso:
não fugir quando as dores se evocam.


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Teu corpo é minha oração e cio


vieste da água como um segredo.
não como um deus 
mas como aquilo que os deuses tentam imitar.

teu corpo,
molhado de luz
e silêncio,
falava.

ah, se falava.

era Ogum na espádua.
era Exu nos quadris.
era homem 
e era mais.

eu,
tola,
com a boca entreaberta
de assombro e fome,
queria ser vento,
ser areia,
ser o nome que tua pele arrepia.

tuas mãos não pediam licença.
mas sabiam —
onde tocar
e como ficar.

não era só desejo.
não era só ternura.
era o susto de me saber
nua
e protegida.

o mundo aquele mundo com gente,
barcos, areia e ceu
desaparecia.
ficava só tua respiração na minha nuca,
e a promessa de que a eternidade
era ali nos teus braços.
na dobra do teu pescoço.

falavas pouco.
mas teus olhos, sim 
diziam poemas sujos e santos.
e eu 
ouvinte, amante, oferenda 
me abria como flor depois da chuva.

e se me perguntam o que é amor,
eu digo:

é o que acontece
quando um homem negro
vem da água doce
e me chama
sem dizer nada.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

A Deusa e o Mortal


Nos salões etéreos onde o tempo dorme,

habita ela feita de luz e eternidade.

Filha do Logos, moldada na forma

do Belo Ideal, da pura Verdade.

Mas o amor, esse enigma sem razão,
não respeita essências nem alturas.
E um dia, a deusa olhou para o chão
e viu, entre sombras, ternura.

Era um homem limitado, finito,
carregando o fardo da carne e da morte.
Tinha falhas, dúvidas, passos aflitos,
mas nos olhos... havia uma insólita sorte.

Ele não sabia de cosmos nem do Uno,
mas sabia ouvir o silêncio do vento.
E ao sorrir, rompia o mundo em sumo,
fazendo dela prisioneira do momento.

Ela, feita para amar o Eterno,
sentiu no efêmero a vertigem e a chama.
O estoico diria: "É ilusão, é externo",
mas o coração dela... o mortal engana.

Não era um herói, nem possuía glória,
mas suas falhas tinham a cor da aurora.
E a deusa, entre o Olimpo e a memória,
desceu da luz e se fez senhora.

Platão sussurrava em sua lembrança:
“O amor é falta, é busca, é ausência.”
E ela, em sua dor, sem esperança,
descobriu no humano... a transcendência.

Mas ele, cego ao fogo que o cercava,
amava-a como se fosse miragem.
Não via que o céu nela chorava,
nem que a eternidade pedia passagem.

E ela, imortal, ajoelhada no chão,
beijou a poeira onde ele passou.
Foi deusa, foi sombra, foi paixão,
e mesmo eterna chorou.

Pois não há dor mais pura ou cruel
do que amar quem jamais entenderá:
que mesmo uma deusa, tocando o céu,
pode cair... se por um mortal se apaixonar.

Meu Corpo é Campo de Guerra?

Carrego no peito uma história que queima, não está escrita em livros, mas em olhares aqueles que me despem sem tocar, que julgam se eu cruzo...