sexta-feira, 19 de abril de 2024

Pedaços

 

Quando deparo-me com esse rio que reflete intensamente o brilho das estrelas,

 recordo-me que se colhessem essas lagrimas que correm em meu rosto, 

bem como as que já lançaram-se rumo ao chão  de terra e clareiras 

talvez eu teria feito um rio do mais amargo e salgado gosto. 


Vejo homens e mulheres morrerem, e vejo outros as nascerem, 

No mais acelerado tempo em que me encontro, 

perco um pouco mais em cada ponto, 

vivendo de desencontros.


A cada pedaço meu que fica, 

carrego essa curta vida, 

vivendo da melhor forma que dá,

esperando esse fragmentar, 

terminar de me despedaçar. 



quinta-feira, 4 de abril de 2024

A mão da mãe d'agua


 


Quando Ana era criança morava às margens de um grande rio. Seu pai, um homem humilde e muito trabalhador, tinha vindo do interior do Maranhão para morar na cidade que todos nomeavam “Peba”. Quando seu pai chegou na cidade, que estava começando seu povoamento, tinha posse de trinta cruzeiros, um bujão de gás, uma criança pequena e uma esposa gestante de poucos meses. 

Passados alguns anos após sua chegada na pequena cidade que escolhera para ser seu lar, o pai de Ana conseguiu arrumar alguns trabalhos que lhe proporcionaram algum dinheiro, e com muito esforço, resolveu cercar um pedaço de terra afastado das casas próximas ao asfalto. Assim, construiu uma casa de palafitas, onde pôde pela primeira vez chamar de lar.

Alguns meses depois, com dificuldade de encontrar trabalho, o pai de Ana resolveu usar o pouco dinheiro que tinha para comprar algumas galinhas. Com as galinhas, Ana passou a cuidar da pequena criação junto com sua mãe e a irmã caçula a fim de vendê-las na feira municipal quando estivessem no tempo. Enquanto o pai buscava trabalho no centro da cidade, aos poucos, a família ia se restabelecendo, Ana e sua mãe cuidaram da pequena criação, que foi crescendo um pouco mais a cada mês. 

Por ser próxima de uma área de floresta, na casa de Ana apareciam algumas vezes animais silvestres, como cobras, escorpiões, lagartos e pequenos carnívoros que vez ou outra atacavam as galinhas e os filhotes de patos que eram cuidados pelas duas. Certo dia, a mãe de Ana encontrou uma cobra jiboia enrolada em uma das galinhas do cercado, não deu para salvar a galinha, então a cobra comeu e fugiu para a mata, foi preciso melhorar o cercado para que isso não acontecesse mais. 

 Outra situação que sempre ocorria às margens do rio, era que quando as águas subiam no mês de outubro até o início do ano seguinte, Ana e sua mãe conduziam a pequena criação de animais para a parte mais alta do terreno a fim de que eles não fossem levados pela correnteza. Elas abriam o cercado para que os animais subissem nas partes altas próximas ao asfalto, assim as águas não chegavam até os animais, e quando as águas baixavam elas retornavam todas as galinhas para o cercado.

Passado um ano inteiro, a família começou a ter condições de comprar uma cama, um fogão para usar o gás, e um pequeno rádio para ouvir as novelas, na mesa não faltava mais arroz, feijão, farinha, açaí, e nem a “mistura”. Enquanto isso, as irmãzinhas de Ana cresciam e começavam a dar seus primeiros passos na ligação relacional e orgânica que tinham todos os ribeirinhos com as águas.

 Nesse tempo, Ana era uma criança feliz e muito grata, pois via os frutos de seu trabalho e o do seus pais aos poucos darem resultados, a fartura que a terra proporcionava a pequena família, agradava seu coração, e pela pequena criação que cuidava com carinho foi se apegando como se fossem gente. 

Contudo, no mês de março do terceiro ano de sua moradia às margens do rio, houve uma forte chuva durante a noite, o temporal fez o nível das águas do rio subir rapidamente. Quando Ana acordou, com os passos acelerados do pai e da mãe, ouviu eles gritarem por ajuda, mas as casas mais próximas ficavam a um quilômetro de distância, já próximas do asfalto. 

 Com tanta correria e preocupação com o nível das águas, ninguém da pequena casa teve tempo para pegar as galinhas e os demais animais da pequena criação, o cercado havia sido arrancado pela correnteza anormal daquele dia, os pais de Ana corriam para pegar os documentos e coisas mais essenciais caso precisassem sair da casa por canoa.

 Quando perceberam a enchente a água já estava chegando no assoalho da pequena casa de palafitas; olhando o desespero do pai e a angústia da mãe, vendo a fonte de renda da família ser carregada pelas águas fortes e barrentas do rio, Ana se desesperou. Mas olhando pela escada da casa, observou que alguns animais tinham escapado da correnteza do rio e estavam presos na parte inferior da casa.

Por ser uma menina muito sensível às dores dos pais, em um gesto inesperado, Ana pegou um facão que estava enfiado em uma brecha da parede da casa, pensando que talvez pudesse ajudar caso se deparasse com uma serpente, ou outro animal perigoso, pulou na água para tentar salvar 3 galinhas e 2 patinhos que estavam presos entre uma viga e um caibro que faziam divisa com uma parede. 

Os pais de Ana não viram quando ela pulou na água, porque estavam tentando levantar alguns objetos, na tentativa de evitar que estragassem muito com as águas e a lama levantadas pelo rio. Enquanto isso, as irmãzinhas de Ana choravam na rede. 

Com medo das serpentes, mas  querendo ajudar os pais a salvar parte da pequena criação, vendo que as águas estavam subindo rapidamente, Ana foi segurando-se nas madeiras do chão da casa para chegar as galinhas, estava escuro e a pouca luz que tinha vinham das frestas de dentro da casa. Mesmo com pouca luz e água chegando ao peitoral,  Ana conseguiu aos poucos chegar até as galinhas. 

Pegando duas galinhas pelas pernas a outra caiu na água e foi arrastada pela correnteza, os patinhos foram pegos primeiro e colocados dentro da camisa para que não tivesse como sair e cair na água. Então, com apenas uma mão,  e a força das pernas, Ana foi se movendo em direção a escada da casa, da qual havia pulado. 

Todavia, ao tomar impulso para pegar na viga seguinte do assoalho, Ana escorregou e não conseguiu se segurar em nada que lhe salvasse da correnteza. Pega pelas águas, Ana foi arrastada, mas não soltou as suas galinhas, acabou perdendo os patinhos que estavam na camisa com a força do rio. 

Sem conseguir nadar, e tendo vários restos de objetos, galhos e troncos vindo em sua direção, alguns objetos como restos de lixo bateram em suas penas, e Ana sentiu que havia cortado sua coxa. Tentando se salvar, Ana pedia socorro, chamava por Deus, e pedia um milagre naquele momento, quando um grande tronco veio em sua direção, Ana mergulhou para o fundo e os dejetos arrastados pelas águas feriram seu rosto e parte de sua costela.     

De repente, já aceitando seu trágico fim, Ana sentiu que não conseguiria ter forças para emergir das águas e tomar fôlego. Nesse momento, o corpo de Ana amoleceu, e ela soltou os animais que tinha na mão. No instante em que fechou os olhos, Ana sentiu algo segurar sua mão.

 Das profundezas do rio, Ana foi direcionada por uma força à superfície das águas, Ana não conseguiu ver o que estava lhe arrastando, mas viu que estava levando-a para a escada de sua casa mesmo com a forte correnteza e restos de galhos na água da enchente. Quando isso aconteceu, Ana já estava muito fraca e não conseguia mais discernir muito bem o que estava acontecendo, então a menina fechou os olhos e desmaiou. 

Quando acordou, a menina estava sentada na escada e seus pais estavam tentando reanimá-la, muito confusa e desorientada Ana perguntou se alguém havia visto quem a salvou, sua mãe olhou para seu pai e ambos ficaram se olhando de forma surpresa. “Ana, como você conseguiu pegar essas galinhas?” Nesse momento, tentando recuperar a memória, a menina disse que tinha soltado as galinhas, no entanto as galinhas estavam ali, sãs e salvas, mas sua costela, braços e coxa estavam feridos, deixando os pais mais confusos e desorientados.

 A menina foi recordando tudo que passou, e contou tudo o que havia acontecido com ela naquelas horas de terror que viveu, mas quando contou que havia sido salva, ninguém entendeu como isso foi possível, pois ninguém ali conseguiria vencer as águas revoltas do rio, da forma que estava, nadando, nem mesmo um adulto. 

Os pais de Ana não acreditaram na história do salvamento, acharam que seria apenas um delírio da menina, e quando o corpo de bombeiros chegou, decidiram levá-la ao médico por conta dos ferimentos.   

Naquela semana, as águas demoraram bastante para baixar, a família foi resgatada pelo corpo de bombeiros e ficaram em um abrigo improvisado no ginásio de esportes junto com várias outras famílias ribeirinhas que também haviam perdido suas coisas na enchente. 

Quando voltou para casa, Ana não conseguiu compreender como estava viva, e quem havia lhe salvado, mas olhando as duas galinhas ali em sua casa, Ana se concentrou na esperança de recomeçar sua amada criação de aves, e continuar auxiliando os pais na renda de casa. Essa era sua motivação e o que lhe dava muita força para seguir. 

Passados algumas semanas depois da enchente que quase tirou sua vida, Ana foi lavar algumas roupas e tomar banho no rio com sua irmã caçula. Levando uma trouxa de roupas na cabeça e segurando a irmãzinha no colo, Ana não se sentia muito bem no rio depois do ocorrido, sempre que levava sua irmã a sensação de ansiedade era pior, mas a ligação dos ribeirinhos com o rio é muito mais forte que o medo que se tem dele. 

Chegando às margens do rio, Ana lavou toda a roupa que havia trago de casa enquanto sua irmãzinha brincava nas partes rasas. Naquele dia, Ana estava muito tensa, e sempre próxima da irmã. No entanto, ao perceber uma movimentação na outra margem do rio, Ana se assustou, pegou logo o facão que sempre trazia e ficou pronta para agir no caso de algum animal perigoso.

Com o olhar fixo na outra margem, Ana percebeu uma mulher saindo da floresta, e com passos lentos e esguios, a mulher sentou-se na areia e ficou lá por um tempo. A mulher olhava na direção das meninas, tinha um ar de realeza, a sua cor negra contrastava com o vestido leve e azul que vestia, sua face transmitia doçura com um singelo sorriso, meigo, que encantou Ana quando ela a viu. 

Fixada na imagem da mulher na outra margem, de súbito, a mulher retirou da manga de seu longo vestido azul dois patinhos filhotes. Colocou os dois patinhos na água, tamanha foi a surpresa de Ana, quando percebeu que os patinhos pareciam muito com os que ela havia tentando resgatar, colocando dentro de sua camisa no dia em que quase foi levada pelas águas. 

Os patinhos vieram nadando até a margem em que Ana e sua irmãzinha estavam, Ana pegou os patinhos e teve certeza que eram os seus patinhos queridos. Interagindo com a Irmã, Ana ficou muito feliz de ver os filhotes de patinhos ali vivos e saudáveis, por um momento, Ana se distraiu com o regresso dos patinhos.   

Quando levantou a vista para vislumbrar novamente a mulher, não mais a viu. A bela mulher de lindas e elegantes vestes havia simplesmente desaparecido, sem dar chance de Ana agradecer por tê-la salvado. Naquele dia, Ana teve certeza que a moça das águas estava ali para proteger ela e sua família. Sem ter visto novamente a mulher em lugar algum das proximidades, ainda perguntou a muitos dos moradores vizinhos se alguém havia visto essa mulher, figura que foi ficando cada vez mais misteriosa, mas entre os ribeirinhos ninguém conhecia a tal mulher com ar de realeza descrita por Ana. 

 Até que um dia, os anciões da vila ribeirinha se reuniram em uma festa em homenagem a Nossa Senhora, na ocasião, a avó de Ana veio do Maranhão para a festa que já era uma tradição entre os ribeirinhos. Ana amava sua avó, e quando ela chegou contou todos os seus feitos durante o ano. Mas, quando contou sobre a mulher no rio que havia salvado sua vida, a avó de Ana falou que sabia quem era a mulher e que a conhecia muito bem. 

Surpresa, Ana ficou feliz de saber que sua avó conhecia a mulher do rio e que iria poder agradecer pessoalmente a ela por ter a salvado. A avó de Ana disse que a mulher era Iemanjá, “mais conhecida como mãe d'água entre os ribeirinhos, ela não aparece assim para qualquer um, é um orixá muito forte, ela é considerada a mãe de todos os adultos e a mãe dos orixás, é a divindade do nosso povo, divindade do rio que deságua no mar, os nossos antepassados dizem que é ela quem decide o destino de todos aqueles que entram nos meandros dos rios e do mar”.

Ana ouviu atentamente a história de sua avó, e sentiu que era uma menina especial, sentiu que uma rainha das energias da natureza estava ali para ouvi-la quando chamasse por socorro, sempre que precisasse, sentiu que poderia pedir a Iemanjá que ela sempre a ajudaria, pois seu coração era forte e bem intencionado; por isso Iemanjá apareceu para ela.

 Sem ter como agradecer pessoalmente, Ana ficou um pouco desapontada, assim, Ana resolveu fazer algo para expressar sua gratidão. Para tal, sempre que a menina ia ao rio, das conchinhas que encontrava na areia, escolhia as mais bonitas, de formas mais perfeitas, para pôr as margens onde avistou a mãe d’água que a salvou, como um sinal de que sempre estaria ali, cultuando sempre a rainha dos rios e dos mares.       


             



A mosca na lixeira



Cute era uma mosca, que nasceu em  uma lata de lixo, sob restos em decomposição, Cute se nutriu e cresceu até poder voar. Quando voou pela primeira vez, Cute sentiu que poderia fazer qualquer coisa, ela voou o mais alto que pode. Quando sentiu fome, Cute comeu frutas em decomposição que estavam no chão de um quintal próximo a lixeira. Pela primeira vez, Cute sentiu o sabor ácido de uma fruta, pois na lixeira em que nasceu só havia restos podres de carne. 

Cute sentia-se feliz, voava sozinha pelas alturas, e quando sentia fome deliciava-se com frutas pelo chão. Certo dia, enquanto voava por um espelho d'água,  Cute viu o seu reflexo, sentiu que era a criatura mais privilegiada do mundo, pois podia voar sobre as águas e contemplar o seu reflexo sob o espelhar de um lindo céu ao entardecer. Cute era feliz por poder voar e por comer suas frutas podre.

 Ela voou por tanto tempo que acabou perdendo a noção de tempo e de distância. Havia se afastado muito da lixeira e se aproximado muito da floresta nas proximidades. Mas a beleza que havia na floresta era tão incrível, que Cute sentisse cada vez mais atraída para o seu interior. Ela viu as fontes, os riachos, os animais e como eles viviam diferentes do que se vivia na lixeira. Tudo parecia tão bom e feliz naquele lugar que Cute não queria ir mais embora dali.

Sentindo que precisava compartilhar sua felicidade e seu aprendizado com outras moscas, para que também sentissem sua alegria, Cute resolveu voltar até a lixeira para falar das belas paisagens e flores que havia visto, dos sons que as águas entoavam quando caíam, das orquestras que os grilos tocavam nas florestas por onde passou. E assim fez, retornou o seu caminho, e voltou para sua lixeira de nascimento. 

Porém, depois de voar por muitas horas, retomando o caminho de casa, sentiu imensa fadiga; pela proximidade de um galho, resolveu pousar por um tempo, a fim de retomar as forças de suas asas. Quando encostou seus pezinhos no galho, olhou que era um pé de caju, havia alguns frutos maduros no topo onde pousou, mas no chão não havia nenhuma fruta em decomposição. 

Cute, estava cansada e com fome, precisava recarregar as energias para a longa viagem que iria fazer de volta para a lixeira. Olhando o fruto no galho, tentada a comer a fruta do topo da árvore, já que estava ao seu alcance, a mosquinha teve medo. Porém, não sabia se era permitido, uma mosquinha como ela, pegar uma fruta tão bonita e viçosa no pé, sem nem ter uma abertura que a deixasse em putrefação. 

Cute então, entrou em um dilema, tinha que recarregar as forças, mas não sabia se poderia comer a fruta no pé. Em toda sua vida, foi ensinada a não entrar em lugares claros e reluzentes, foi ensinada ainda, que sua comida era a que caia no chão, e para que sobrevivessem não poderia fazer nenhum barulho, por isso, Cute nunca havia soltado nenhum som próximo de possíveis predadores, apenas voava, o mais silenciosamente possível.

Porém, enquanto Cute, pensava na resolução de seu problema, um grande besouro veio voando em sua direção, Cute aproveitou uma fenda no casco da árvore para se esconder. O besouro veio planando com um balançar de um lado para outro, de uma forma meio desajeitada, pousou no mesmo galho em que Cute estava e começou andar em direção aos cajus do topo.

 Cute não conhecia o besouro, por isso se escondeu, mas sabia que besouros são geralmente inofensivos se não fossem irritados. Na lixeira que nasceu havia visto alguns besouros, mas nunca teve coragem de falar com eles, pareciam criaturas grandes e vistosas de mais, mosquinha que andassem com besouros barulhentos daqueles poderiam não viver por muito tempo.

Observando os passos do besouro, Cute viu que ele foi até as frutas mais bonitas do topo da árvore e começou a comê-las, uma por uma, o besouro ia comendo com seu grande gancho mandibular. Cute achou estranho o comportamento do besouro, pois embora não fosse uma mosca, ele frequentava os mesmo locais que ela, comia a comida do chão como ela e todas as moscas, ainda assim, ele não se deteve para comer as frutas do topo da árvore.

Impressionada e curiosa com a atitude do besouro, Cute tomou coragem e foi até o topo onde o besouro estava, para falar com ele. “ besouro, você não teme comer as frutas do topo das árvores, afinal de contas, somos ensinados a comer as frutas podres do chão, e a não fazer ruído algum para que predadores não nos comam, e parece-me que você não tem esses temores lhe preocupando nesse momento”, o besouro ignorou Cute por um tempo, e continuou comendo. 

Após da uma pausa em sua alimentação, o besouro olhou para Cute e respondeu “ o medo nasce da antecipação do mal, eu tenho sim medo dos predadores, mas se eu viver sob domínio do medo,  jamais saberia o quão saborosas, doces e perfeitas são as frutas dos topos das árvores”. Após dizer isso, o besouro voou para longe, deixando Cute pensando sobre o que sua fala queria dizer. 

Cute então, olhando os restos de fruta aberta deixadas pelo besouro, foi até o caju que pingava um suculento líquido quase transparente sobre o galho que escorria até cair no chão. Olhando a fruta fresca, que exalava um perfume agridoce atraente e suculento, tomada pela fome, Cute começou a comer os restos da fruta deixada pelo besouro. Quando o suco da fruta entrou em contato com seu paladar, Cute não conseguiu descrever suas sensações, ela havia comido frutas e alimentos pobres e ácidos a vida inteira, enquanto as frutas do topo eram as mais deliciosas que já havia experimentado. 

 Cute só comeu os restos das frutas deixadas pelo besouro, mas apreciou cada segundo da delícia que estava experimentando naquele instante, o sabor fresco do fruto era muito mais saboroso do que o gosto dos frutos putrefatos que sempre comerá no chão.

 Após saciar sua fome e recuperar suas forças, Cute retomou sua jornada; renovada pelas novas descobertas, no caminho de volta para a lixeira, imaginava quão extraordinária seria sua boa nova para as outras moscas, passaram toda a vida comendo restos de carne podre, enquanto poderiam vencer seus medos, que agora Cute considerava temores bobos, e comer dos frutos frescos e viçosos dos topos das árvores. Com certeza, seria a melhor notícia da história para as moscas, pensou Cute. 

Chegando na lixeira, Cute encontrou sua mãe, seu pai, e seus irmãos, ali com muito afeto e alegria, contou a todos de suas descobertas e de suas aventuras na floresta, sua euforia foi tamanha que incomodou a todos da lixeira. O pai de Cute, muito sério e irritado, falou que naquela lixeira não havia espaço para moscas que quisessem voar por lugares tão perigosos, que aquilo que ela considerava belo e maravilhoso iria muito em breve tirar sua vida.

Sua mãe, apenas silenciou, não emitiu nenhum som, apenas baixou as pesadas asas e não expressou opinião alguma. Seus irmãos riram, disseram que Cute estava louca e que em breve sua loucura a colocaria em sérias enrascadas. Cute se entristeceu, o brilho que estava em seus olhos, naquele momento, se apagou. E novamente, Cute silenciou, não emitiu som algum, e tentou não contrariar a família que tanto amava.  

Cute então, passou um bom tempo pensando em tudo que viu e experimentou, e em tudo que a família havia dito. Mas, a mosquinha sentia que jamais esqueceria o sabor de fruta fresca que havia sentido na boca, que não queria viver em um mundo que não pudesse ver novamente o seu reflexo nos espelhos d’água ao entardecer, que não ouvisse novamente as sinfonias das águas do riacho, e que menos ainda perderia a orquestra dos grilos em noite enluarada. Sentir que sua vida poderia se limitar apenas a lixeiras e carne putrefata, entristecia e condenava seu coração a angústia.   

Então, decidida a não viver mais na lixeira, não comer apenas restos em decomposição, Cute voou o mais alto e o mais distante possível da lixeira. Embora soubesse que sentiria falta da família, Cute sabia que ficariam bem, mas se ela ficasse jamais poderia experimentar novamente as frutas do topo das árvores.

 Daquele dia em diante, Cute, se cuidou sozinha, não se calou mais, sempre que podia seu zumbido de mosquinha era escutado, tendo cautela e muito cuidado. Assim, a pequena mosquinha, não deixou mais de aprender, apreciar todas as belezas que há na diversidade de paisagens e animais que encontrava pelo caminho era seu maior deleite de viver.


Plantas do quintal

quando eu era bem pequena, você me dava chá,

 fazia garrafadas e me mandava tomar

 fui criada com raízes, flores e  canções de ninar

tive muita anemia, mas você fez-me sarar. 


hoje, não sei os seus segredos

como fazia para identificar 

como cada planta do quintal 

tinha o poder de uma doença curar 


me recordo da sua beleza

da sabedoria com que ensinava 

sua saúde era de ferro 

doença nenhuma chegava


você faz muita falta, seu artifício medicinal 

dominava a natureza, com maestria sem igual 

respeitava a floresta, seu temor e seus deuses nela estava 

para cada flor que morria, muitas novas você plantava 


Barbatimão, jucá, hortelã

boldo, cuxá, chanana, romã

quebra pedra, vassourinha, laranja e limão

erva-cidreira, gengibre, manjericão 


todos tinham segredos guardados, 

mas no poder divino da criação, 

em suas mãos eram revelados 

doutorada em saúde natural 

até sua comida cheirava, 

mais que as roupas brancas no varal, 

toda essa memoria me veio agora, 

lembrando das flores do quintal lá fora. 


hoje, com saudades recordo sua astucia  

queria que sua medicina perdurasse mais nessa terra 

mas são segredos que passam oralmente com minúcia 

aos descendentes dos filhos da África com os filhos das américas 

somos rastros do que outrora éramos, 

eliminados a milênios pela ganancia dos homens de guerras. 


se eu pudesse, escreveria um livro sobre você

é uma fatalidade que não saiba ler ou escrever  

mesmo sem educação formal,

mais que os médicos do hospital, você sabia tratar. 

em uma farmácia jamais pusera os pés

não gastava o pouco que tinha 

mas aprendeu o que podia

com seu povo aimorés.


Meu Corpo é Campo de Guerra?

Carrego no peito uma história que queima, não está escrita em livros, mas em olhares aqueles que me despem sem tocar, que julgam se eu cruzo...