quinta-feira, 4 de abril de 2024

A mosca na lixeira



Cute era uma mosca, que nasceu em  uma lata de lixo, sob restos em decomposição, Cute se nutriu e cresceu até poder voar. Quando voou pela primeira vez, Cute sentiu que poderia fazer qualquer coisa, ela voou o mais alto que pode. Quando sentiu fome, Cute comeu frutas em decomposição que estavam no chão de um quintal próximo a lixeira. Pela primeira vez, Cute sentiu o sabor ácido de uma fruta, pois na lixeira em que nasceu só havia restos podres de carne. 

Cute sentia-se feliz, voava sozinha pelas alturas, e quando sentia fome deliciava-se com frutas pelo chão. Certo dia, enquanto voava por um espelho d'água,  Cute viu o seu reflexo, sentiu que era a criatura mais privilegiada do mundo, pois podia voar sobre as águas e contemplar o seu reflexo sob o espelhar de um lindo céu ao entardecer. Cute era feliz por poder voar e por comer suas frutas podre.

 Ela voou por tanto tempo que acabou perdendo a noção de tempo e de distância. Havia se afastado muito da lixeira e se aproximado muito da floresta nas proximidades. Mas a beleza que havia na floresta era tão incrível, que Cute sentisse cada vez mais atraída para o seu interior. Ela viu as fontes, os riachos, os animais e como eles viviam diferentes do que se vivia na lixeira. Tudo parecia tão bom e feliz naquele lugar que Cute não queria ir mais embora dali.

Sentindo que precisava compartilhar sua felicidade e seu aprendizado com outras moscas, para que também sentissem sua alegria, Cute resolveu voltar até a lixeira para falar das belas paisagens e flores que havia visto, dos sons que as águas entoavam quando caíam, das orquestras que os grilos tocavam nas florestas por onde passou. E assim fez, retornou o seu caminho, e voltou para sua lixeira de nascimento. 

Porém, depois de voar por muitas horas, retomando o caminho de casa, sentiu imensa fadiga; pela proximidade de um galho, resolveu pousar por um tempo, a fim de retomar as forças de suas asas. Quando encostou seus pezinhos no galho, olhou que era um pé de caju, havia alguns frutos maduros no topo onde pousou, mas no chão não havia nenhuma fruta em decomposição. 

Cute, estava cansada e com fome, precisava recarregar as energias para a longa viagem que iria fazer de volta para a lixeira. Olhando o fruto no galho, tentada a comer a fruta do topo da árvore, já que estava ao seu alcance, a mosquinha teve medo. Porém, não sabia se era permitido, uma mosquinha como ela, pegar uma fruta tão bonita e viçosa no pé, sem nem ter uma abertura que a deixasse em putrefação. 

Cute então, entrou em um dilema, tinha que recarregar as forças, mas não sabia se poderia comer a fruta no pé. Em toda sua vida, foi ensinada a não entrar em lugares claros e reluzentes, foi ensinada ainda, que sua comida era a que caia no chão, e para que sobrevivessem não poderia fazer nenhum barulho, por isso, Cute nunca havia soltado nenhum som próximo de possíveis predadores, apenas voava, o mais silenciosamente possível.

Porém, enquanto Cute, pensava na resolução de seu problema, um grande besouro veio voando em sua direção, Cute aproveitou uma fenda no casco da árvore para se esconder. O besouro veio planando com um balançar de um lado para outro, de uma forma meio desajeitada, pousou no mesmo galho em que Cute estava e começou andar em direção aos cajus do topo.

 Cute não conhecia o besouro, por isso se escondeu, mas sabia que besouros são geralmente inofensivos se não fossem irritados. Na lixeira que nasceu havia visto alguns besouros, mas nunca teve coragem de falar com eles, pareciam criaturas grandes e vistosas de mais, mosquinha que andassem com besouros barulhentos daqueles poderiam não viver por muito tempo.

Observando os passos do besouro, Cute viu que ele foi até as frutas mais bonitas do topo da árvore e começou a comê-las, uma por uma, o besouro ia comendo com seu grande gancho mandibular. Cute achou estranho o comportamento do besouro, pois embora não fosse uma mosca, ele frequentava os mesmo locais que ela, comia a comida do chão como ela e todas as moscas, ainda assim, ele não se deteve para comer as frutas do topo da árvore.

Impressionada e curiosa com a atitude do besouro, Cute tomou coragem e foi até o topo onde o besouro estava, para falar com ele. “ besouro, você não teme comer as frutas do topo das árvores, afinal de contas, somos ensinados a comer as frutas podres do chão, e a não fazer ruído algum para que predadores não nos comam, e parece-me que você não tem esses temores lhe preocupando nesse momento”, o besouro ignorou Cute por um tempo, e continuou comendo. 

Após da uma pausa em sua alimentação, o besouro olhou para Cute e respondeu “ o medo nasce da antecipação do mal, eu tenho sim medo dos predadores, mas se eu viver sob domínio do medo,  jamais saberia o quão saborosas, doces e perfeitas são as frutas dos topos das árvores”. Após dizer isso, o besouro voou para longe, deixando Cute pensando sobre o que sua fala queria dizer. 

Cute então, olhando os restos de fruta aberta deixadas pelo besouro, foi até o caju que pingava um suculento líquido quase transparente sobre o galho que escorria até cair no chão. Olhando a fruta fresca, que exalava um perfume agridoce atraente e suculento, tomada pela fome, Cute começou a comer os restos da fruta deixada pelo besouro. Quando o suco da fruta entrou em contato com seu paladar, Cute não conseguiu descrever suas sensações, ela havia comido frutas e alimentos pobres e ácidos a vida inteira, enquanto as frutas do topo eram as mais deliciosas que já havia experimentado. 

 Cute só comeu os restos das frutas deixadas pelo besouro, mas apreciou cada segundo da delícia que estava experimentando naquele instante, o sabor fresco do fruto era muito mais saboroso do que o gosto dos frutos putrefatos que sempre comerá no chão.

 Após saciar sua fome e recuperar suas forças, Cute retomou sua jornada; renovada pelas novas descobertas, no caminho de volta para a lixeira, imaginava quão extraordinária seria sua boa nova para as outras moscas, passaram toda a vida comendo restos de carne podre, enquanto poderiam vencer seus medos, que agora Cute considerava temores bobos, e comer dos frutos frescos e viçosos dos topos das árvores. Com certeza, seria a melhor notícia da história para as moscas, pensou Cute. 

Chegando na lixeira, Cute encontrou sua mãe, seu pai, e seus irmãos, ali com muito afeto e alegria, contou a todos de suas descobertas e de suas aventuras na floresta, sua euforia foi tamanha que incomodou a todos da lixeira. O pai de Cute, muito sério e irritado, falou que naquela lixeira não havia espaço para moscas que quisessem voar por lugares tão perigosos, que aquilo que ela considerava belo e maravilhoso iria muito em breve tirar sua vida.

Sua mãe, apenas silenciou, não emitiu nenhum som, apenas baixou as pesadas asas e não expressou opinião alguma. Seus irmãos riram, disseram que Cute estava louca e que em breve sua loucura a colocaria em sérias enrascadas. Cute se entristeceu, o brilho que estava em seus olhos, naquele momento, se apagou. E novamente, Cute silenciou, não emitiu som algum, e tentou não contrariar a família que tanto amava.  

Cute então, passou um bom tempo pensando em tudo que viu e experimentou, e em tudo que a família havia dito. Mas, a mosquinha sentia que jamais esqueceria o sabor de fruta fresca que havia sentido na boca, que não queria viver em um mundo que não pudesse ver novamente o seu reflexo nos espelhos d’água ao entardecer, que não ouvisse novamente as sinfonias das águas do riacho, e que menos ainda perderia a orquestra dos grilos em noite enluarada. Sentir que sua vida poderia se limitar apenas a lixeiras e carne putrefata, entristecia e condenava seu coração a angústia.   

Então, decidida a não viver mais na lixeira, não comer apenas restos em decomposição, Cute voou o mais alto e o mais distante possível da lixeira. Embora soubesse que sentiria falta da família, Cute sabia que ficariam bem, mas se ela ficasse jamais poderia experimentar novamente as frutas do topo das árvores.

 Daquele dia em diante, Cute, se cuidou sozinha, não se calou mais, sempre que podia seu zumbido de mosquinha era escutado, tendo cautela e muito cuidado. Assim, a pequena mosquinha, não deixou mais de aprender, apreciar todas as belezas que há na diversidade de paisagens e animais que encontrava pelo caminho era seu maior deleite de viver.


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