quinta-feira, 4 de abril de 2024

A mão da mãe d'agua


 


Quando Ana era criança morava às margens de um grande rio. Seu pai, um homem humilde e muito trabalhador, tinha vindo do interior do Maranhão para morar na cidade que todos nomeavam “Peba”. Quando seu pai chegou na cidade, que estava começando seu povoamento, tinha posse de trinta cruzeiros, um bujão de gás, uma criança pequena e uma esposa gestante de poucos meses. 

Passados alguns anos após sua chegada na pequena cidade que escolhera para ser seu lar, o pai de Ana conseguiu arrumar alguns trabalhos que lhe proporcionaram algum dinheiro, e com muito esforço, resolveu cercar um pedaço de terra afastado das casas próximas ao asfalto. Assim, construiu uma casa de palafitas, onde pôde pela primeira vez chamar de lar.

Alguns meses depois, com dificuldade de encontrar trabalho, o pai de Ana resolveu usar o pouco dinheiro que tinha para comprar algumas galinhas. Com as galinhas, Ana passou a cuidar da pequena criação junto com sua mãe e a irmã caçula a fim de vendê-las na feira municipal quando estivessem no tempo. Enquanto o pai buscava trabalho no centro da cidade, aos poucos, a família ia se restabelecendo, Ana e sua mãe cuidaram da pequena criação, que foi crescendo um pouco mais a cada mês. 

Por ser próxima de uma área de floresta, na casa de Ana apareciam algumas vezes animais silvestres, como cobras, escorpiões, lagartos e pequenos carnívoros que vez ou outra atacavam as galinhas e os filhotes de patos que eram cuidados pelas duas. Certo dia, a mãe de Ana encontrou uma cobra jiboia enrolada em uma das galinhas do cercado, não deu para salvar a galinha, então a cobra comeu e fugiu para a mata, foi preciso melhorar o cercado para que isso não acontecesse mais. 

 Outra situação que sempre ocorria às margens do rio, era que quando as águas subiam no mês de outubro até o início do ano seguinte, Ana e sua mãe conduziam a pequena criação de animais para a parte mais alta do terreno a fim de que eles não fossem levados pela correnteza. Elas abriam o cercado para que os animais subissem nas partes altas próximas ao asfalto, assim as águas não chegavam até os animais, e quando as águas baixavam elas retornavam todas as galinhas para o cercado.

Passado um ano inteiro, a família começou a ter condições de comprar uma cama, um fogão para usar o gás, e um pequeno rádio para ouvir as novelas, na mesa não faltava mais arroz, feijão, farinha, açaí, e nem a “mistura”. Enquanto isso, as irmãzinhas de Ana cresciam e começavam a dar seus primeiros passos na ligação relacional e orgânica que tinham todos os ribeirinhos com as águas.

 Nesse tempo, Ana era uma criança feliz e muito grata, pois via os frutos de seu trabalho e o do seus pais aos poucos darem resultados, a fartura que a terra proporcionava a pequena família, agradava seu coração, e pela pequena criação que cuidava com carinho foi se apegando como se fossem gente. 

Contudo, no mês de março do terceiro ano de sua moradia às margens do rio, houve uma forte chuva durante a noite, o temporal fez o nível das águas do rio subir rapidamente. Quando Ana acordou, com os passos acelerados do pai e da mãe, ouviu eles gritarem por ajuda, mas as casas mais próximas ficavam a um quilômetro de distância, já próximas do asfalto. 

 Com tanta correria e preocupação com o nível das águas, ninguém da pequena casa teve tempo para pegar as galinhas e os demais animais da pequena criação, o cercado havia sido arrancado pela correnteza anormal daquele dia, os pais de Ana corriam para pegar os documentos e coisas mais essenciais caso precisassem sair da casa por canoa.

 Quando perceberam a enchente a água já estava chegando no assoalho da pequena casa de palafitas; olhando o desespero do pai e a angústia da mãe, vendo a fonte de renda da família ser carregada pelas águas fortes e barrentas do rio, Ana se desesperou. Mas olhando pela escada da casa, observou que alguns animais tinham escapado da correnteza do rio e estavam presos na parte inferior da casa.

Por ser uma menina muito sensível às dores dos pais, em um gesto inesperado, Ana pegou um facão que estava enfiado em uma brecha da parede da casa, pensando que talvez pudesse ajudar caso se deparasse com uma serpente, ou outro animal perigoso, pulou na água para tentar salvar 3 galinhas e 2 patinhos que estavam presos entre uma viga e um caibro que faziam divisa com uma parede. 

Os pais de Ana não viram quando ela pulou na água, porque estavam tentando levantar alguns objetos, na tentativa de evitar que estragassem muito com as águas e a lama levantadas pelo rio. Enquanto isso, as irmãzinhas de Ana choravam na rede. 

Com medo das serpentes, mas  querendo ajudar os pais a salvar parte da pequena criação, vendo que as águas estavam subindo rapidamente, Ana foi segurando-se nas madeiras do chão da casa para chegar as galinhas, estava escuro e a pouca luz que tinha vinham das frestas de dentro da casa. Mesmo com pouca luz e água chegando ao peitoral,  Ana conseguiu aos poucos chegar até as galinhas. 

Pegando duas galinhas pelas pernas a outra caiu na água e foi arrastada pela correnteza, os patinhos foram pegos primeiro e colocados dentro da camisa para que não tivesse como sair e cair na água. Então, com apenas uma mão,  e a força das pernas, Ana foi se movendo em direção a escada da casa, da qual havia pulado. 

Todavia, ao tomar impulso para pegar na viga seguinte do assoalho, Ana escorregou e não conseguiu se segurar em nada que lhe salvasse da correnteza. Pega pelas águas, Ana foi arrastada, mas não soltou as suas galinhas, acabou perdendo os patinhos que estavam na camisa com a força do rio. 

Sem conseguir nadar, e tendo vários restos de objetos, galhos e troncos vindo em sua direção, alguns objetos como restos de lixo bateram em suas penas, e Ana sentiu que havia cortado sua coxa. Tentando se salvar, Ana pedia socorro, chamava por Deus, e pedia um milagre naquele momento, quando um grande tronco veio em sua direção, Ana mergulhou para o fundo e os dejetos arrastados pelas águas feriram seu rosto e parte de sua costela.     

De repente, já aceitando seu trágico fim, Ana sentiu que não conseguiria ter forças para emergir das águas e tomar fôlego. Nesse momento, o corpo de Ana amoleceu, e ela soltou os animais que tinha na mão. No instante em que fechou os olhos, Ana sentiu algo segurar sua mão.

 Das profundezas do rio, Ana foi direcionada por uma força à superfície das águas, Ana não conseguiu ver o que estava lhe arrastando, mas viu que estava levando-a para a escada de sua casa mesmo com a forte correnteza e restos de galhos na água da enchente. Quando isso aconteceu, Ana já estava muito fraca e não conseguia mais discernir muito bem o que estava acontecendo, então a menina fechou os olhos e desmaiou. 

Quando acordou, a menina estava sentada na escada e seus pais estavam tentando reanimá-la, muito confusa e desorientada Ana perguntou se alguém havia visto quem a salvou, sua mãe olhou para seu pai e ambos ficaram se olhando de forma surpresa. “Ana, como você conseguiu pegar essas galinhas?” Nesse momento, tentando recuperar a memória, a menina disse que tinha soltado as galinhas, no entanto as galinhas estavam ali, sãs e salvas, mas sua costela, braços e coxa estavam feridos, deixando os pais mais confusos e desorientados.

 A menina foi recordando tudo que passou, e contou tudo o que havia acontecido com ela naquelas horas de terror que viveu, mas quando contou que havia sido salva, ninguém entendeu como isso foi possível, pois ninguém ali conseguiria vencer as águas revoltas do rio, da forma que estava, nadando, nem mesmo um adulto. 

Os pais de Ana não acreditaram na história do salvamento, acharam que seria apenas um delírio da menina, e quando o corpo de bombeiros chegou, decidiram levá-la ao médico por conta dos ferimentos.   

Naquela semana, as águas demoraram bastante para baixar, a família foi resgatada pelo corpo de bombeiros e ficaram em um abrigo improvisado no ginásio de esportes junto com várias outras famílias ribeirinhas que também haviam perdido suas coisas na enchente. 

Quando voltou para casa, Ana não conseguiu compreender como estava viva, e quem havia lhe salvado, mas olhando as duas galinhas ali em sua casa, Ana se concentrou na esperança de recomeçar sua amada criação de aves, e continuar auxiliando os pais na renda de casa. Essa era sua motivação e o que lhe dava muita força para seguir. 

Passados algumas semanas depois da enchente que quase tirou sua vida, Ana foi lavar algumas roupas e tomar banho no rio com sua irmã caçula. Levando uma trouxa de roupas na cabeça e segurando a irmãzinha no colo, Ana não se sentia muito bem no rio depois do ocorrido, sempre que levava sua irmã a sensação de ansiedade era pior, mas a ligação dos ribeirinhos com o rio é muito mais forte que o medo que se tem dele. 

Chegando às margens do rio, Ana lavou toda a roupa que havia trago de casa enquanto sua irmãzinha brincava nas partes rasas. Naquele dia, Ana estava muito tensa, e sempre próxima da irmã. No entanto, ao perceber uma movimentação na outra margem do rio, Ana se assustou, pegou logo o facão que sempre trazia e ficou pronta para agir no caso de algum animal perigoso.

Com o olhar fixo na outra margem, Ana percebeu uma mulher saindo da floresta, e com passos lentos e esguios, a mulher sentou-se na areia e ficou lá por um tempo. A mulher olhava na direção das meninas, tinha um ar de realeza, a sua cor negra contrastava com o vestido leve e azul que vestia, sua face transmitia doçura com um singelo sorriso, meigo, que encantou Ana quando ela a viu. 

Fixada na imagem da mulher na outra margem, de súbito, a mulher retirou da manga de seu longo vestido azul dois patinhos filhotes. Colocou os dois patinhos na água, tamanha foi a surpresa de Ana, quando percebeu que os patinhos pareciam muito com os que ela havia tentando resgatar, colocando dentro de sua camisa no dia em que quase foi levada pelas águas. 

Os patinhos vieram nadando até a margem em que Ana e sua irmãzinha estavam, Ana pegou os patinhos e teve certeza que eram os seus patinhos queridos. Interagindo com a Irmã, Ana ficou muito feliz de ver os filhotes de patinhos ali vivos e saudáveis, por um momento, Ana se distraiu com o regresso dos patinhos.   

Quando levantou a vista para vislumbrar novamente a mulher, não mais a viu. A bela mulher de lindas e elegantes vestes havia simplesmente desaparecido, sem dar chance de Ana agradecer por tê-la salvado. Naquele dia, Ana teve certeza que a moça das águas estava ali para proteger ela e sua família. Sem ter visto novamente a mulher em lugar algum das proximidades, ainda perguntou a muitos dos moradores vizinhos se alguém havia visto essa mulher, figura que foi ficando cada vez mais misteriosa, mas entre os ribeirinhos ninguém conhecia a tal mulher com ar de realeza descrita por Ana. 

 Até que um dia, os anciões da vila ribeirinha se reuniram em uma festa em homenagem a Nossa Senhora, na ocasião, a avó de Ana veio do Maranhão para a festa que já era uma tradição entre os ribeirinhos. Ana amava sua avó, e quando ela chegou contou todos os seus feitos durante o ano. Mas, quando contou sobre a mulher no rio que havia salvado sua vida, a avó de Ana falou que sabia quem era a mulher e que a conhecia muito bem. 

Surpresa, Ana ficou feliz de saber que sua avó conhecia a mulher do rio e que iria poder agradecer pessoalmente a ela por ter a salvado. A avó de Ana disse que a mulher era Iemanjá, “mais conhecida como mãe d'água entre os ribeirinhos, ela não aparece assim para qualquer um, é um orixá muito forte, ela é considerada a mãe de todos os adultos e a mãe dos orixás, é a divindade do nosso povo, divindade do rio que deságua no mar, os nossos antepassados dizem que é ela quem decide o destino de todos aqueles que entram nos meandros dos rios e do mar”.

Ana ouviu atentamente a história de sua avó, e sentiu que era uma menina especial, sentiu que uma rainha das energias da natureza estava ali para ouvi-la quando chamasse por socorro, sempre que precisasse, sentiu que poderia pedir a Iemanjá que ela sempre a ajudaria, pois seu coração era forte e bem intencionado; por isso Iemanjá apareceu para ela.

 Sem ter como agradecer pessoalmente, Ana ficou um pouco desapontada, assim, Ana resolveu fazer algo para expressar sua gratidão. Para tal, sempre que a menina ia ao rio, das conchinhas que encontrava na areia, escolhia as mais bonitas, de formas mais perfeitas, para pôr as margens onde avistou a mãe d’água que a salvou, como um sinal de que sempre estaria ali, cultuando sempre a rainha dos rios e dos mares.       


             



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