segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Código-Fonte de Mim

 No início, o compilador da existência executou meu método __init__(). As primeiras linhas carregaram o módulo “família”, importaram afeto e definiram variáveis essenciais: nome, curiosidade, fomeDeMundo. Meu código ainda era curto, mas cada instrução vinha carregada de significado.

Na infância, os loops eram infinitos: brincar → cair → levantar → repetir. Cada erro não era falha fatal, mas um debug silencioso, feito com abraços e lições simples. Os arrays de amigos começaram a se preencher e, no vetor de memórias, surgiram cores, cheiros e risadas que até hoje não foram sobrescritos.

Veio a adolescência: atualização de sistema. Novos pacotes instalados, coragem, rebeldia, identidade, nem todos estáveis. O log registrou conflitos, descobertas e warnings sobre escolhas precipitadas. Algumas funções que eu julgava essenciais foram descontinuadas, e outras, inesperadas, surgiram como atalhos para o que sou.

Na fase adulta, comecei a rodar processos mais complexos. A thread dos sonhos funcionava em paralelo com a thread das responsabilidades. Algumas exceções (Exception: VidaImprevisivel) interromperam a execução, mas aprendi a tratar erros com try/except, transformar falhas em novos algoritmos e reexecutar rotinas com mais sabedoria.

Hoje, meu programa está longe da versão final. Eu não acredito em “build” estável; prefiro o modo beta perpétuo, onde cada experiência é uma linha de código nova, cada pessoa que conheço é uma biblioteca que expande minhas possibilidades.

No meu repositório interno, guardo commits de todas as versões de mim, desde a 0.1 até a mais recente, porque cada uma contribui para o que sou agora. E, quando chegar o momento de encerrar o processo, espero que o meu output final seja claro: “Processo concluído com sucesso. Memória compartilhada com o mundo.”

Ass: Professora.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Meu Corpo Tremia

Pai, eu te amei mesmo sangrando

Pai,
Perdi as contas de quantas vezes meu corpo de menina tremia ao som dos teus passos no corredor?
Teu grito, muralha.
Tua mão, sentença.
Teus olhos, espelhos rachados onde aprendi a temer o amor.

Busquei muitas vezes sua presença em momentos na escola, em datas comemorativas, em momentos que meus talentos fora dos trabalhos domésticos eram observados e valorizados por outros, mas o senhor não estava lá,

Mas estava em casa, e minhas obrigações também. Lá eu não tinha sonhos, e se tinha, não poderia expressar, porque eram grandes de mais e exigiam de um comportamento robótico que eu não sustentava mais, desejando ardentemente a morte todos os dias, sem coragem de eu mesma a convocar...

Tu me fizeste sombra,
um vulto calado entre panelas e castigos,
subjugada antes mesmo de saber o que era liberdade, sentimentos constantes de desespero eram o natural do dia a dia, objeto moldado pelo peso da tua frustração,
filha feita para servir o silêncio da tua dor.

Tu me chamavas de fraca quando eu só queria colo.
Tu me calavas, quando minha alma gritava por espaço.
E cada lágrima que engoli em segredo
regou a raiva, a culpa, a confusão de ser tua responsabilidade.

Mas o tempo…
esse velho paciente que tudo transforma,
me ensinou a olhar para trás sem virar pedra.
A ver, nas tuas ruínas, um homem também ferido, tentando construir com os escombros da vida, alguma forma de amor ainda que torta, te move frágil mente e de maneira grotesca e deformada.

Hoje, não te romantizo.
Não apago tuas falhas com tintas de perdão fácil. Mas te compreendo. E nisso, há amor. Um amor amadurecido na dor.
Um amor que sabe: que até o carrasco, um dia, foi criança.
Um amor que reconhece:
tu fizeste o que podias com as ferramentas que tinhas.

E por mais que tenhas me ensinado com dor,
também me ensinaste a força de me reerguer.
Teus erros foram meus mestres.
Tua rigidez, meu impulso para quebrar correntes.
E, em meio às tuas ruínas, construí alicerces.

Pai,
te amo não apesar do que foste,
mas porque aprendi a amar até o que doeu.
E sou grata, porque no fim, entre os cacos,
ainda encontrei um coração tentando te amar do jeito que es.

sábado, 2 de agosto de 2025

Da Mentira e da Traição

Oh, quão vil é o ser que, sem pudor,
Oculta a face em véus de falsidade!
Que envenena o pão, finge amizade,
E oculta o punhal sob o calor do amor.

Mentir é despojar-se da razão,
Negar-se à luz da própria consciência;
É sepultar, com mórbida indolência,
A honra, a dignidade e o coração.

Trair, ah! Oh verbo infame e maldito,
É cuspir no afeto que se recebe,
É sorrir, e, por trás, cravar a breve
Lâmina fria do desprezo escrito.

Não há no lobo, na serpente ou fera,
Tanta vileza quanto há no humano
Que, por desdém ou por prazer profano,
Rompe a palavra, e a si mesmo desterra.

Pois quem fere com engano e traição,
Não age por instinto, mas escolha:
É alma que, de livre, se desfolha
Do nobre senso e da razão do irmão.

A mentira é veneno sorrateiro,
A traição, incêndio devorante.
Ambas destroem, com sopro constante,
Tudo o que é puro, belo e verdadeiro.

E aquele que assim vive e assim se esconde,
Não é senão caricatura humana,
Bestial na forma e na intenção insana,
Pois do dever, já nada mais responde.

Foge-lhe o brio, a honra, o arrependimento,
Despido está de toda humanidade;
E, em seu lugar, só resta a falsidade,
Fria herdeira do seu esquecimento.

Carta de Solitude

Não é solidão o que me habita, é lucidez.
É olhar ao redor e enxergar o teatro de sombras onde homens vestem máscaras,
homens que se orgulham de suas armaduras forjadas no medo e no ego.
São crianças crescidas, escondidas sob títulos de "chefes de família",
"provedores", "homens de fé", como se isso os absolvesse
de suas fraquezas mais vis e de seus amores mais covardes.

Vejo mulheres inteiras, inteiras!, 
mulheres que carregam beleza e coragem nos ombros,
que amam com generosidade, com cuidado, com entrega, que constroem onde falta,
que acolhem mesmo quando são feridas, desonrradas ou traídas. 
E ao lado delas, homens de alma pequena,
que se escondem atrás de Bíblias abertas em páginas que não leem,
que trabalham até tarde não por honra,
mas para evitar a verdade de seus vazios.
Homens que se refugiam no patriarcado como um porão escuro
onde não precisam ser vistos, ou julgados.

Mas o que me revolta de verdade,
o que me embrulha o estômago e me incendeia os olhos,
são os solteiros, os encantadores de carência,
os que fingem profundidade com frases roubadas de livros que não viveram,
os que se dizem desconstruídos apenas até a primeira mulher que os ame demais.
Ah, esses são os mais cruéis...
pois vendem sonhos sabendo que não ficarão para o café da manhã.
Sabem exatamente quando uma mulher se rende, e é aí que começam a moldá-la, dobrá-la, testar os limites do quanto ela suporta se anular por amor.

Não estou amargurada, estou desperta.
E a lucidez, por vezes, tem gosto de fel.
Porque não quero mais me perder em promessas vazias,
não quero mais ver mulheres sendo sugadas até o osso
por homens que nem sabem o que fazer com um amor verdadeiro.
A covardia, hoje, tem perfume caro e discurso progressista.
Tem um “eu não sou como os outros”, "e aí sumida", "você é especial" na boca,
e uma ausência constante na alma.

Mas eu observo.
De longe, mas com olhos que queimam.
E escrevo, para que outras não esqueçam de se olhar no espelho antes de se olhar nos olhos de um homem.

A minha solitude não é castigo, é protesto.
É recusa. É revolução silenciosa. E nela, sou inteira. Porque prefiro a paz de minha própria companhia do que o caos que tantos chamam de “relacionamento”.

Assinada,
uma mulher só e absolutamente livre.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Minha Mãe

Minha mãe se chama Mulher. E não poderia se chamar de outro jeito. É o nome que carregam as mulheres que vieram antes, que pariram caladas, que limparam o mundo com as mãos nuas e a alma cheia de poeira. Mulher, como muitas, não nasceu para si. Nasceu para servir.

Ela me olha e diz que sou rebelde. Que falo demais. Que homem nenhum vai me aguentar desse jeito. Às vezes sorri cansada, outras vezes suspira com um certo medo, como se minha liberdade fosse perigosa, como se minha voz fosse uma ameaça ao que ela construiu com tanto esforço. E talvez seja.

Mulher cresceu ouvindo que mulher direita não responde. Que mulher que presta casa e cala. Foi ensinada a ser pequena, e ela foi. Mesmo sendo imensa. Analfabeta, negra, pobre, neta de quem foi acorrentada e bisneta de quem teve o ventre colonizado. Ainda assim, Mulher dobrava lençóis e a si mesma com uma destreza que nenhum doutor saberia nomear.

Eu, nasci depois. Com os cabelos dela, a pele mais clara, o corpo herdeiro das marcas dela e da história dela, mas com um mundo onde já se podia gritar. E gritei. Desde pequena. Eu queria entender por que ela dizia "sim" para tanto “não”. Por que ela aceitava migalhas de amor, tapa disfarçado de carinho, silêncio enfeitado de respeito. E ela me dizia, em voz baixa: “é assim que é”.

Mas não é.

Ela não entende quando falo de feminismo, de feminina, de empoderamento. Quando recito Angela Davis na cozinha enquanto ela corta batatas. Não entende por que me recuso a aceitar a mesma cruz que ela carrega nas costas. Me chama de “moderna demais”, como se fosse uma ofensa. Diz que homem nenhum quer uma mulher que não sabe calar. E talvez ela tenha razão.

Mas se for para amar com os joelhos no chão e os olhos abaixados, prefiro ficar sozinha.

Minha mãe acha que ser mulher é aguentar. Eu quero que ser mulher seja existir, inteira, desobediente, livre.

Às vezes brigamos. Porque ela quer me ensinar a sobreviver, e eu quero aprender a viver.

O racismo moldou o corpo dela. A fez servil, invisível, necessária e descartável. O patriarcado ensinou que ela devia agradecer por um prato de comida e uma cama dividida com quem a machucava. Já eu fui criada entre livros, mas carrego no corpo a memória dela, e as feridas herdadas.

Somos duas mulheres em tempos diferentes do mesmo combate. Ela quer paz. Eu quero guerra. Mas no fundo, estamos ambas cansadas, de nos calarmos, de não cabermos, de sermos sempre “as outras”.

Mulher me chama para jantar, como quem pede trégua. Eu vou. Sentamos. Em silêncio. Ela me olha e sorri, com os olhos marejados de cansaço e orgulho. Porque, no fundo, ela sabe: se hoje eu posso lutar, é porque ela sobreviveu.

E isso, talvez, já seja amor.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

O Amor Que Esquecemos

Amar uma mulher sempre foi, em sua essência mais pura, um gesto de coragem. Não daqueles barulhentos, de espadas em punho ou promessas gritadas ao vento. Mas da coragem silenciosa: de permanecer. De cuidar mesmo quando ninguém está vendo. De proteger sem aprisionar. De ser fiel não só no corpo, mas no pensamento, na intenção, no coração.

Era sobre isso, não era? Amar uma mulher. Reconhecer nela um universo inteiro e decidir, todos os dias, desbravar esse universo com delicadeza, com mãos que seguram, não que esmagam. Com olhos que enxergam além da aparência. Com palavras que constroem, não que ferem. Amar era também renunciar abrir mão de pequenos egos para acolher um "nós" maior, mais inteiro.

Mas algo se perdeu pelo caminho.

Hoje, o amor parece ter virado um jogo. Um campo minado de estratégias, silêncios planejados, respostas medidas com régua emocional. Não se protege mais; se testa. Não se cuida; se provoca. A fidelidade virou moeda rara num mercado de promessas ocas. E o respeito… ah, o respeito. Quase uma relíquia, como uma carta antiga esquecida na gaveta de um tempo que não volta.

A intimidade, aquela que nasce da alma nua, do riso sincero, do toque que acalma, foi substituída pela pressa. Pela necessidade de mostrar, não de sentir. Pelo medo de se entregar e virar "fraco". Como se amar de verdade fosse um erro, e não o acerto mais bonito que alguém pode cometer.

As mulheres, essas que deveriam ser amadas com presença e verdade, estão se ferindo em silêncios. Estão aprendendo a lidar com a ausência de cuidado como se fosse normal. A se contentar com migalhas disfarçadas de afeto. A duvidar de si quando são traídas, manipuladas, ignoradas. Como se o erro estivesse nelas. Como se não merecessem mais do que isso.

E talvez o mais triste seja perceber que muitos homens já não sabem mais amar uma mulher. Não por maldade, mas por distração. Por orgulho. Por um cansaço emocional que herdaram de uma cultura que ensina a conquistar, mas não a permanecer. Que valoriza o jogo, mas não a entrega.

Amar uma mulher de verdade virou quase um ato de resistência. Uma arte esquecida, daquelas que poucos ainda sabem fazer e menos ainda têm coragem de aprender.

Talvez um dia, quem sabe, a gente se lembre. Que amar não é sobre ganhar. É sobre oferecer. Cuidar. Respeitar. E estar ali. Inteiro. Mesmo quando o mundo disser que não vale a pena.

Mas hoje… hoje parece que esquecemos. Mas ainda assim, ainda desejo amar...

terça-feira, 15 de julho de 2025

No Pescoço

No aproximar dessa noite, ela o vê chegar,
Com o colo exposto e o pescoço a falar
Em tons roxos, violáceos, que não se calam,
Marcas que gritam onde os lábios se calam e os olhos não suportam acreditar no que vê.

Seus olhos descem, devagar, como quem teme
Encontrar na pele dele o que o coração já teme.
Um campo de guerra, um jardim invadido,
Um corpo que antes era abrigo, agora parece ser dividido.

A mente dela dança em círculos febris,
Constrói cenários de beijos servís,
Imagina mãos que não são as suas,
Lábios estranhos em noites nuas.

Mas ainda assim, entre o peito amante e a razão,
Há um fio de fé, uma tênue ilusão.
“Talvez tenha sido um descuido, um tropeço,
Uma briga, o ciúmes alheio, um erro sem preço…”

Ela escuta sua voz, ela luta pra acreditar, envolvida por um amor que, ora é paz, ora é turbulência e confusão.
Ele jura amor eterno, com olhar transparente.
E mesmo que o mundo diga que ele mente,
Ela escolhe crer, num gesto inconsequente.

Porque amar é, às vezes, fechar os olhos,
É silenciar o grito e escolher acreditar no amor.
É plantar esperança no solo da dúvida,
É apostar no amor mesmo quando ele muda.

Ela sofre, sim, num silêncio denso e doloroso,
Carregando no peito um peso imenso.
Mas em meio à dor, uma flor ainda brota:
A vontade de crer, mesmo quando tudo é revolta.

E assim ela fica, amante e ferida,
Esperando que o amor vença a mentira.
Porque há algo de sagrado em perdoar,
E um pouco de céu em continuar a amar...

Código-Fonte de Mim

 No início, o compilador da existência executou meu método __init__() . As primeiras linhas carregaram o módulo “família”, importaram afet...