quinta-feira, 31 de julho de 2025

Minha Mãe

Minha mãe se chama Mulher. E não poderia se chamar de outro jeito. É o nome que carregam as mulheres que vieram antes, que pariram caladas, que limparam o mundo com as mãos nuas e a alma cheia de poeira. Mulher, como muitas, não nasceu para si. Nasceu para servir.

Ela me olha e diz que sou rebelde. Que falo demais. Que homem nenhum vai me aguentar desse jeito. Às vezes sorri cansada, outras vezes suspira com um certo medo, como se minha liberdade fosse perigosa, como se minha voz fosse uma ameaça ao que ela construiu com tanto esforço. E talvez seja.

Mulher cresceu ouvindo que mulher direita não responde. Que mulher que presta casa e cala. Foi ensinada a ser pequena, e ela foi. Mesmo sendo imensa. Analfabeta, negra, pobre, neta de quem foi acorrentada e bisneta de quem teve o ventre colonizado. Ainda assim, Mulher dobrava lençóis e a si mesma com uma destreza que nenhum doutor saberia nomear.

Eu, nasci depois. Com os cabelos dela, a pele mais clara, o corpo herdeiro das marcas dela e da história dela, mas com um mundo onde já se podia gritar. E gritei. Desde pequena. Eu queria entender por que ela dizia "sim" para tanto “não”. Por que ela aceitava migalhas de amor, tapa disfarçado de carinho, silêncio enfeitado de respeito. E ela me dizia, em voz baixa: “é assim que é”.

Mas não é.

Ela não entende quando falo de feminismo, de feminina, de empoderamento. Quando recito Angela Davis na cozinha enquanto ela corta batatas. Não entende por que me recuso a aceitar a mesma cruz que ela carrega nas costas. Me chama de “moderna demais”, como se fosse uma ofensa. Diz que homem nenhum quer uma mulher que não sabe calar. E talvez ela tenha razão.

Mas se for para amar com os joelhos no chão e os olhos abaixados, prefiro ficar sozinha.

Minha mãe acha que ser mulher é aguentar. Eu quero que ser mulher seja existir, inteira, desobediente, livre.

Às vezes brigamos. Porque ela quer me ensinar a sobreviver, e eu quero aprender a viver.

O racismo moldou o corpo dela. A fez servil, invisível, necessária e descartável. O patriarcado ensinou que ela devia agradecer por um prato de comida e uma cama dividida com quem a machucava. Já eu fui criada entre livros, mas carrego no corpo a memória dela, e as feridas herdadas.

Somos duas mulheres em tempos diferentes do mesmo combate. Ela quer paz. Eu quero guerra. Mas no fundo, estamos ambas cansadas, de nos calarmos, de não cabermos, de sermos sempre “as outras”.

Mulher me chama para jantar, como quem pede trégua. Eu vou. Sentamos. Em silêncio. Ela me olha e sorri, com os olhos marejados de cansaço e orgulho. Porque, no fundo, ela sabe: se hoje eu posso lutar, é porque ela sobreviveu.

E isso, talvez, já seja amor.

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