A agulha zunia com precisão enquanto os traços ganhavam forma no antebraço da professora Ana. Era seu primeiro símbolo histórico tatuado: o busto de Clio, musa da História, cercada por folhas de oliveira. O estúdio era pequeno, com pôsteres de bandas de rock e uma bandeira estilizada com o rosto de Che Guevara que ironicamente estava desbotada.
O tatuador, Matheus, era falante. E, como muitos que misturam agulhas com filosofia de mesa de bar, soltou a frase como quem joga um cigarro aceso em palha seca:
— Sabe o que eu acho? Que o nazismo era de esquerda.
Mariana não esboçou reação. Ela apenas levantou os olhos do livro que segurava, um exemplar gasto de A Origem do Totalitarismo, de Hannah Arendt.
— Sério?
ela disse com calma, como quem vê um aluno errar a tabuada de propósito só pra chamar atenção.
— Ué, tá no nome, né? Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. É só ler.
— Então pela mesma lógica, a República Democrática Alemã também era uma democracia plena?
ela rebateu, arqueando uma sobrancelha.
— Ou a Coreia do Norte é uma “república popular” só porque está escrito na fachada?
Marcelo soltou um riso debochado, como quem sabe que está perdendo, mas finge jogar xadrez.
— Mas veja bem, professora… o socialismo e o comunismo sempre tentou monopolizar narrativas. Desde Marx, essa coisa de "luta de classes", "consciência de classe"… tudo isso não é só teoria. É tática. Tática de poder. Eles dominam a cultura, as universidades, os livros de história… A esquerda controla tudo, até o que a gente pensa. Por isso as pessoas acreditam que o nazismo era de direita. Mas isso foi implantado. É o sistema.
Mariana respirou fundo. Sabia que estava lidando não com um ignorante, mas com um resistente.
— Matheus, o nazismo foi anticomunista desde o início. Hitler mandou exterminar comunistas e socialistas reais. Os nazistas prenderam sindicalistas, dissolveram partidos de esquerda, destruíram movimentos populares. O regime defendia valores tradicionais, era racista, autoritário, militarista… Tudo isso é característica clássica de extrema-direita. Hannah Arendt, Timothy Snyder, Richard Evans, todos os grandes historiadores sérios apontam isso. E isso não é uma "narrativa", é documentação, é história.
Ela tirou o celular e mostrou imagens: fotos dos campos, da Noite das Facas Longas, do incêndio do Reichstag.
Matheus fez um gesto com a mão, afastando o celular como se a luz da verdade lhe ferisse os olhos.
— Mas nada disso me convence. Não adianta, professora. Nem com essas fontes todas. Nem com você sendo especialista. Eu já tenho minha opinião formada.
Ana então silenciou. Guardou o celular, olhou para o busto recém-tatuado, agora envolto em um plástico protetor.
Ela sabia que aquele diálogo era como tentar explicar a cor azul a quem se recusa a abrir os olhos. E então, antes de sair, disse apenas:
— Platão contou de homens presos numa caverna, vendo apenas sombras projetadas na parede. Um deles consegue sair e, pela primeira vez, vê o sol, vê o mundo real e quando tenta voltar para contar aos outros, ninguém acredita. Acham que ele enlouqueceu.
Matheus ficou em silêncio.
— É que a luz dói
ela completou.
— E nem todo mundo está pronto pra sair da caverna.
E saiu.
Moral:
Ter consciência histórica é como ter olhos ajustados à luz do sol. Fora da caverna, o mundo pode ser incômodo, mas é real. E só os que se dispõem a questionar suas certezas conseguem vê-lo como ele é, e não como gostariam que fosse.
Nenhum comentário:
Postar um comentário